Anthony Blake (Tempo) – Kairos

[…] Cullman1, mais uma vez, trouxe material importante para nossa compreensão. Ele extrai uma palavra grega recorrente para tempo que ressoa com essas implicações — kairos. Kairos significa, em geral, “momento propício” ou “momento crucial”; mas no Novo Testamento significa, antes, o tempo escolhido por Deus. Assim, Cristo diz: “Meu kairos está próximo” e, como homem, avança para aquele momento escolhido por Ele mesmo como Deus. O sentido do kairoi prevaleceu entre os que estavam próximos a Jesus Cristo e também o encontramos, até certo ponto, em Paulo e explicitado em Apocalipse. Em nenhum outro lugar a importância desse sentido de kairoi é tão enfatizada quanto no terrível fracasso dos discípulos no Getsêmani: “Não pudestes vigiar comigo nem uma hora?”

Há um grande enigma com relação ao kairoi. A astrologia e a divinação também se preocuparam em “interpretar os tempos”, mas aqui, pelo menos no primeiro caso, associaram-nos a ciclos de influência e momentos de conjunção para que se tornassem previsíveis. No entanto, Cullman insiste que o kairoi não pode ser previsto pela mente humana, sendo escolhido por Deus e, portanto, livre de qualquer limitação. As duas atitudes não são excludentes se pudermos aceitar que o mundo — como uma totalidade e nos elementos particulares que são os seres humanos — tem uma vontade independente de Deus e que os kairoi são momentos de encontro entre a vontade maior e a menor que dão ao momento seu significado imperecível.

Se o mundo não tivesse um significado independente de Deus, então a vontade de Deus teria a mesma autoridade em todos os momentos e, portanto, todo o tempo seria aglutinado em uma única ação, não permitindo nenhum significado à decisão humana. Essa doutrina da “nulidade” do significado do mundo à parte de Deus é exatamente a de Maya no pensamento hindu e só pode ser compatibilizada com o ensinamento das escrituras cristãs por meio de modificações extremas: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João, III, 16.)

Se permitirmos que o mundo tenha sua independência de sentido, então faz todo senso que seja importante se os homens percebem ou não o advento do kairoi. De fato, isso torna esse um dos fatores mais importantes na vida humana, pois é a chave para a maneira como os homens participam da Redenção e alcançam sua própria salvação. Da perspectiva cósmica, os kairoi são momentos em que o sentido é criado ex nihilo por meio da cooperação do mundo com Deus na realização de Seu propósito. A doutrina da cooperação, ou sinergia, está implícita em todas as descobertas de Cullman, mas muitas vezes procuramos em vão por uma formulação adequada, já que, no fundo, trata-se de uma questão prática sobre como nós mesmos devemos agir agora.

A noção de kairoi nos permite perceber que a obra de Deus deve se concentrar no tempo histórico. Essa obra não pode ser realizada como um processo contínuo e homogêneo no tempo linear: ela pertence ao tempo estrutural e é, de fato, sua própria essência, pois a estrutura é uma questão de sentidos, não de vínculos existenciais. No Antigo Testamento, a ação de Deus na história do povo de Israel é revelada pela profecia. A profecia revela o sentido do passado significativo, o kairoi, e o que é predestinado e preordenado. No Novo Testamento, a profecia se torna um todo com o progresso dos eventos, e isso revela, mais uma vez, como em Cristo o tempo estrutural é girado.

A articulação do tempo estrutural deve estar relacionada à criação e à regulação de padrões de decisão. Isso implica um trabalho que “ocorre” em um “tempo objetivo”. É difícil conceber uma “passagem” sem a atualização que é uma passagem. Isso está até mesmo além da “passagem para” a rede de estruturas imperecíveis de significado.

[Anthony Blake, Systematics Vol 3 No. 4 March 1966. Christ and Time by Oscar Cullman (review)]


  1. Christ and Time by Oscar Cullman, translated by F. V. Filson. 3rd edition 1962, S.C.M. Press 

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