Gurdjieff — Relatos de Belzebu a seu Neto
Excertos do Capítulo 38 — Religiões
A propósito, querido filho, preciso explicar certo fato, absurdo no mais alto grau e, de um ponto de vista objetivo, realmente sacrílego, que lhe fará ver claramente a verdadeira insignificância de suas interpretações das Santas Escrituras, que se propagaram grandemente, entre os seus favoritos, desde o último processo de destruição mútua, e que, como você já suspeita, contém tudo que se queira, exceto a realidade e a verdade.
Estou falando do que está dito nas Escrituras Santas, tais como chegaram até eles — sem terem supostamente sofrido a mínima alteração — sobre o mais importante, mais sensato, e mais devotado dos seres, diretamente iniciados por esse Individuum sagrado, chamados “apóstolos”.
Esse discípulo devotado, amado por Jesus Cristo, se chamava “Judas”.
Pela versão atual dessas Escrituras Santas, aquele que nela vem procurar o conhecimento da verdade adquire, em sua essência, a convicção de que Judas era o ser mais covarde, mais vil e o traidor mais pérfido que se possa conceber.
Na realidade, não apenas Judas era o mais fiel e mais devotado dos adeptos mais próximos de Jesus Cristo, mas só sua inteligência, engenhosidade e presença de espírito permitiram a esse Individuum sagrado cumprir todos os atos cujo resultado, se não chegou a destruir completamente neles as consequências das propriedades do órgão kundabuffer, entretanto alimentou e inspirou, durante uma vintena de séculos, o psiquismo da maioria deles, e ao menos tornou sua triste existência mais ou menos suportável.
Para melhor imaginar a verdadeira individualidade de Judas, e o alcance de sua manifestação, saiba que, após a formação definitiva de Jesus Cristo como ser responsável, este Individuum sagrado, que revestira o corpo planetário de um ser terrestre, decidiu, para cumprir a missão que lhe fora designada d’O Alto, esclarecer a razão dos seres terrestres tricerebrais por meio de doze deles, pertencentes a tipos diferentes, que começou a iniciar e preparar pessoalmente.
Ora, no momento mais intenso de suas divinas atividades, circunstâncias alheias a ele o obrigaram, antes de ter levado a termo suas intenções — isto é, antes de ter tempo de lhes explicar certas verdades cósmicas e dar as instruções necessárias para o futuro — a deixar cumprir-se a ruptura prematura da sua existência planetária.
Decidiu então, em acordo com os doze seres terrestres que tinha intencionalmente iniciado, recorrer ao mistério sagrado do almtznoshinu — cujo processo de realização todos já conheciam e para cuja execução tinham adquirido todos os dados requeridos — para conservar a possibilidade, enquanto durasse o estado de individualidade cósmica em que se encontrava, de terminar o trabalho de preparação conforme o plano que traçara para cumprir a missão que O Alto lhe designara.
Mas, após terem-se decidido, estando prestes a tentar a preparação necessária a esse mistério sagrado, perceberam que ela não poderia ser feita, por já ser muito tarde.
Estavam cercados pelos soldados e esperavam de um momento a outro a prisão, com todas suas consequências.
Foi então que Judas interveio.
Este futuro santo, assistente inseparável e fiel de Jesus Cristo, foi “amaldiçoado” e “execrado” pelos estranhos seres de seu planeta, em sua ingênua estupidez, quando, ao contrário, merecia a gratidão dos seres terrestres tricerebrais de todas as gerações seguintes, pois lhes prestou imenso serviço objetivo.
O ato sensato, corajoso, cuja iniciativa tomou com devotamento desinteressado, consistiu nisto: quando se perdia a esperança de poder efetuar a preparação necessária à realização do almtznoshinu sagrado, aquele que é hoje Santo Judas levantou-se de repente e disse apressadamente:
“Eu irei, e farei o necessário para que possam completar sem impedimentos a preparação sagrada; comecem a trabalhar sem demora.”
Dito isso, aproximou-se de Jesus Cristo, e após conversar em voz baixa com ele alguns instantes, recebeu sua bênção e se foi.
E os outros puderam levar a bom termo tudo que exigia a execução do processo sagrado do almtznoshinu.
Depois do que acabo de dizer, você compreenderá, sem nenhuma dúvida, como os seres terrestres tricerebrais pertencentes aos dois tipos de que falei falsificaram todas as verdades para servir a seus fins egoístas, a ponto de cristalizar na presença dos seres de todas as gerações seguintes uma representação tão manifestamente injusta de Judas — esse Santo graças ao qual se beneficiaram por vinte séculos de um foco benéfico de paz no coração de sua existência desolada.
Penso mesmo que, se assim apresentaram Judas em suas “Santas Escrituras”, foi porque um deles teve necessidade, por qualquer motivo, de minimizar a importância de Jesus Cristo.
Ele era, parece, tão ingênuo, tão incapaz de prever e pressentir alguma coisa, em suma, tão imperfeito, que, embora tenha vivido longos anos com Judas, mostrou-se impotente para sentir e compreender que seu discípulo mais próximo era um pérfido traidor que o venderia por trinta desgraçados dinheiros.”