Este breve capítulo, que nada mais é do que um convite para a leitura dos Relatos de Belzebu a seu Neto, não pode esperar englobar todo e tudo [referência a All and Everything] em suas páginas, mas quero chamar a atenção para dois episódios extensos relacionados à gênese da comunidade espiritual – ou, para usar palavras próximas às de Gurdjieff, a gênese das comunidades de buscadores da verdade. O primeiro episódio se passa em Atlântida, é claro, há muito tempo, onde um homem chamado Belcultassi “estava contemplando, de acordo com a prática de todo ser normal, e seus pensamentos estavam concentrados em si mesmo, ou seja, no sentido e no objetivo de sua existência, [quando] de repente ele sentiu e percebeu que o processo de funcionamento de todo ele até então não havia ocorrido como deveria, de acordo com a sã lógica. Essa constatação inesperada o chocou tão profundamente que, a partir de então, ele se dedicou exclusivamente a ser capaz, a qualquer custo, de desvendar isso e entender.” [B294]
As respostas de Belcultassi à sua descoberta passam por estágios, primeiro de autoexame intensificado e sincero, que o leva a ver claramente os impulsos de “amor-próprio”, “orgulho”, “vaidade” e assim por diante, que perturbam sua vida interior. Ele entra em um autoestudo sistemático “para lembrar quais impulsos evocaram quais reações nele… em seu corpo, em seus sentimentos e em seus pensamentos, e o estado de sua essência quando ele reagiu a qualquer coisa com mais ou menos atenção, e… quando… ele se manifestou conscientemente com seu ‘eu’ ou agiu automaticamente sob a direção apenas de seu instinto”. Esse prolongado trabalho interior foi realizado, mas, duvidando da exatidão de suas observações, Belcultassi recorre a amigos e conhecidos para compartilhar sua investigação: será que eles poderiam confirmar em suas próprias vidas interiores o que ele encontrou em si mesmo? “Todos eles sentiram e viram em si mesmos tudo da mesma forma que ele”, e vários “seres sinceros” entre eles, “tendo penetrado na essência da questão”, começaram a se encontrar com Belcultassi de tempos em tempos para compartilhar observações e percepções. Outros logo se juntam ao seu círculo, o suficiente para fundar a “Sociedade de Akhaldans”, dedicada ao “esforço para se tornar consciente do sentido e do objetivo do Ser dos entes” [B296].1 A partir daí, a sociedade evolui rapidamente para um centro de trabalho sobre si mesmo e de pesquisa em muitos campos de conhecimento necessários para apoiar o objetivo da sociedade.
Há muito mais detalhes a serem explorados e apreciados nessa grande história, mas já vimos o suficiente para saber do que se trata: uma história da gênese do trabalho interno compartilhado entre pessoas sérias e dedicadas, gerando, por sua vez, uma cultura de busca e pesquisa. Ela começa com um indivíduo alarmado, um despertar parcial. Progride em direção aos esforços e à preocupação compartilhada de um grupo de pessoas que se mantêm mutuamente no padrão que reconhecem como necessário. Elas são amigas da aspiração umas das outras, adversárias do esquecimento umas das outras. Não estamos mais falando da Atlântida; estamos falando do desenvolvimento do ensinamento de Gurdjieff.
A história de Belcultassi e da Sociedade de Akhaldans representa um movimento de base para o alto: Belcultassi é simplesmente um ser humano sério que encontrou seu caminho e, consequentemente, compartilhou suas percepções com outros.
[Roger Lipsey, Gurdjieff Reconsidered]