Michel de Salzmann: Eterno e Sempre Novo Desafio

Extrato da palestra de Michel de Salzmann, publicada por Jacob Needleman, no livro “No Caminho do Autoconhecimento”, editado pela Novos Umbrais, em 1982. Tradução de Adelaide Petters Lessa

Neste capítulo, respeitando os significados atribuídos pelo Autor, optou-se pela seguinte tradução: being, ser; I, eu: ego, eu psicológico centrado na mente; self, eu-espírito, religioso, essencial, equilibrado, eu-total; universal SELF, o Ser universal. (N. da T.)

Temos, todos nós, algo em comum — além do fato de existirmos agora: para cada um dos presentes aqui, admita-o ou não, o que mais lhe importa é sua própria pessoa. Não estou me referindo a aspectos específicos do ego, como egoísmo, amor a si próprio, ou importância atribuída a si mesmo, mas a algo muito simples, muito factual, absolutamente inevitável. Não sou eu extremamente importante uma vez que tudo quanto existe, existe porque eu sou? E se penso o contrário, não sou eu novamente quem pensa? Tudo passa através de mim. Sou a única pessoa que pode experimentar ou viver minha vida. Não é uma vida de segunda mão, embora infelizmente nos esqueçamos disso a maior parte do tempo.

Este fato nos traz imediatamente à mais difícil das questões. Quem sou eu?

Passemos a considerar esta questão, evitando, na medida do possível, nossos “pré-fabricados” padrões de pensamento. Imediatamente somos tentados, nem se duvide, a fazer referência a um ponto de vista filosófico, ou a recordar a concepção budista ou hindu do eu espiritual, ou a abordar o problema em termos de psicologia profunda, behaviorismo ou qualquer outra de nossas “idiossincrasias” pessoais. Enfrentemos a questão de maneira mais provocativa — ingênua, eu diria. Assim, volto a mim mesmo. O que é o “mim mesmo”? Tenho algo que seja meu?

Minha vida? Sim, de certo modo ela me foi dada. Nada fiz para obtê-la. Um fato existencial: ela me é dada, agora. Posso ter consciência dela. E opera através de meu corpo.

Este corpo que me foi dado trabalha por si mesmo segundo leis definidas. É sede de miríades de processos e de,constantes intercâmbios com o mundo exterior. Várias influências determinantes lhe deram suas peculiaridades: raça, hereditariedade, clima, alimento; assim como influências mais remotas: astrológicas, cósmicas, etc, das quais pouco sabemos. Seja como for, este corpo funciona e, na maior parte do tempo, sou inconsciente disto. Ele parece um animal. Um animal em si mesmo é uma grande criatura, conforme nos relembra a etimologia: “anima” bem como “espírito” refere-se à respiração, à misteriosa “animação” do corpo. Assim animado, o corpo vai e vem, come, dorme, elimina, tem relações sexuais e às vezes apela para mim a fim de ser reconhecido.e cuidado; mas, de hábito, funciona perfeitamente sem mim. Nos momentos de maior lucidez, percebo o corpo como parte integrante de um grande todo, do qual é inseparável. Composto de matéria, meu corpo obedece à causalidade do que denominamos mundo físico.

Existe ainda outro grande todo de que sou parte, ao qual pertenço, onde estou imerso. É a sociedade, ou a cultura. Às vezes percebo nitidamente que tudo quanto possuo, todos meus pensamentos, minhas palavras, meu comportamento físico aprendido — todo o conteúdo bem como a dinâmica de minha vida psicológica — me foi “imposto” de fora.

Minha única originalidade parece residir na forma como tudo isto foi posto junto. Cada um tem seu estilo, associações e hábitos característicos; o mesmo, porém, acontece num computador. A forma como tudo isto foi posto junto meramente aconteceu. Aconteceu por contingência — através de eventos acidentais — e desenvolveu-se bem inconscientemente. Meu computador opera com novas entradas segundo seu próprio programa condicionado. Nada de completamente novo pode jamais sair dele. Nenhum de nós, por exemplo, poderia desenhar um animal inteiramente novo. Empregaria inevitavelmente aspectos ou elementos conhecidos. Posso dizer, em termos crus e provocativamente, que tudo, inclusive meu caráter e equipamento, me foi dado. Minha vida psíquica, embora obedeça à causalidade das intenções, também me é dada, sendo condicionada ou motivada basicamente por seu mundo cultural.

Algo, pelo menos, parece permanecer indubitavelmente meu, algo que me dá o senso de minha identidade: eu, meu eu, o que aparenta estar consciente de tudo. Não é este, porém, um daqueles pressupostos profundamente enraizados que nunca discutimos? Na verdade, nosso ego nos surge como uma dádiva, talvez uma dádiva venenosa, mas não obstante uma grande dádiva de nossa cultura.

Não nascemos apenas para a existência humana. Os existencialistas diriam: a existência humana é, a princípio, consciência-do-ego. Esta consciência só se revela na criança nascida e educada na sociedade humana, geralmente após os dois anos de idade, quando o sistema neurológico amadureceu por completo. A consciência-do-ego surge, então, simultaneamente como afirmação de que eu-sou-eu, como discriminação de que eu-não-sou-o-outro, e como um fato a mim apresentado e por mim admitido. Imediatamente a dissociação se manifesta no ego: o ego-em-consciência-do-ego sendo simultaneamente ego-sujeito e ego-objeto. A despeito de todas as suas dramáticas tentativas para fugir a esta subjetividade condicionada, o ego parece sempre incapaz de ser um sujeito sem um objeto . . . a não ser que desça, com algum auxílio, à raiz de sua contradição fundamental.

Deveria eu concluir que sou apenas uma conjunção específica de influências externas, uma espécie de elo metabólico com o cosmos? Algo evidentemente permanece irredutível a essa perspectiva. Embora em profundidade eu tenha nítida percepção de que tudo em mim é “importado”, condicionado e dividido, eu ainda creio numa vocação misteriosa e compulsiva: a de ser eu mesmo. Como Isis tentando desesperadamente reunir os membros dispersos de Osiris, o ego está sempre à procura de uma identidade unificada, significativa.

De fato, com a consciência-do-ego e sua provocadora ambiguidade, despertou-se em nós um estranho e imediato senso de responsabilidade. Isto me aproxima daquilo que posso reconhecer como genuinamente meu. Especialmente se me lembro de que ser responsável significa etimologicamente responder, dar resposta. Tudo o que me resta fazer, e para falar com franqueza, tudo o que estou fazendo, é responder, responder à minha existência. O que realmente define um homem e nos mostra quem ele é, é a sua resposta. Se existe para mim a menor oportunidade em meio às leis operantes, surgida por acaso ou por necessidade, não está ela na forma como respondo — isto é, na qualidade de minha participação em tudo o que me é dado pela experiência imediata de minha vida?

Para sermos claros, minha genuína responsividade não se encontra em qualquer das respostas formais que meu computador programado nunca deixa de emitir. Tem de ser procurada muito além delas. Consiste em um ato intencional de conhecer, com uma capacidade singular para a liberdade, uma vez que pode existir ultrapassando meu condicionamento “formal”. Esta resposta primordial, livre, é a minha atenção. Minha atenção é a minha própria e fundamental resposta à minha existência. É simultaneamente minha resposta e minha responsabilidade. Uma abertura ao mesmo tempo que um engajamento, ela é o meu tornar-me presente ao que existe, é minha participação hic et nunc na atualidade do ser. Surgindo como ato básico de conhecer através do ser, minha atenção, despertada, volta-se simultaneamente para mim e para o mundo. Todo o resto, isto é, todas as outras respostas formais, toda minha atuação, todas as minhas manifestações exteriorizadas prosseguem por si mesmas, dependentes em sua qualidade da qualidade de minha atenção.

Esta idéia de qualidade da atenção não nos é familiar, nem o é a ideia de diferentes níveis possíveis de atenção. Mas isto nos levaria a entrar em pormenores, de que nos esquivamos aqui. Digamos que nossa atenção é muito maior do que geralmente pensamos. Trata-se de um mecanismo cerebral ou mental. Envolve todo nosso ser. Se suas potencialidades estão longe de se tornar ato em nossa vida habitual, é exatamente porque talvez não seja reconhecida como uma clave multidimensional e um principio unificador de nosso ser.

Paradoxalmente, este ato básico de conhecer, que é a atenção, só ocorre frente à nossa ignorância — ou seja, quando existe uma interrogação. Seu nível e, digamos assim, seu grau de “totalização” são proporcionais ao nosso questionar. Certamente já notaram que quando uma questão é vital — quando nos remexe as entranhas, como se costuma dizer — ela suspende todos os movimentos desnecessários, tanto os emocionais e físicos quanto os mentais. Ela abre caminho à consciência e à sensibilidade genuínas, componentes de meu total poder de atenção. É apenas entre meu não saber e meu anseio de saber que me encontro presente, mobilizado, aberto, novo — ou seja, atento.

Atenção, em sua forma ativa, é portanto inseparável de interrogação; essencialmente, em sua pureza, é um ato de fazer perguntas. Este ato é o privilégio de nossa existência humana. Um animal contenta-se com ser. Constitui responsabilidade do homem questionar-se sobre o significado de seu ser.

Em nossa sociedade, interessada principalmente em produção e eficiência, o drama reside em que nossa capacidade de questionar, tão vivida ainda na primeira infância, vem a ser rapidamente erradicada ou marginalizada em benefício de nossa capacidade de responder. Quando uma criança propõe uma verdadeira pergunta, na maioria das vezes recebe uma resposta cretina. Nos melhores casos, o educador vai ao dicionário, para ter certeza de que sua resposta é correta. Entretanto, de algum modo inconsciente, se não com orgulho, ele fecha a questão. Desde os bancos escolares até o fim de nossa vida, sempre se necessita dar resposta. Somos obrigados a aprender a responder. Se não sabemos como responder, não somos aprovados. Aos poucos, nos tornamos uma espécie de máquina-modelo-capaz-de-responder-a-todas-as-situações com toda a necessária cegueira às suas contradições. Nossa vida exige essa espécie de resposta, cujo grau de sofisticação talvez encubra seu caráter condicionado. Mas podemos, sob essa necessidade dominadora, manter viva nossa mais autêntica e preciosa capacidade, a de interrogar?

Na verdade, este é todo o problema com que nos defrontamos. Somos bastante fortes, bastante livres, bastante interessados para realmente nos interrogarmos enquanto respondemos? O desafio é tão difícil quanto defrontar-se com um koan zen. Enquanto desempenhamos nossa parte, engajados sem trapacear na situação que nos solicita, podemos, ao mesmo tempo, nem afirmar, nem negar, nem resistir nem aderir, pressupor que sabemos ou não sabemos, que somos capazes ou incapazes? Podemos estar presentes, sem julgamento ou indiferença, sem solução ou escapatória? Teríamos de estar alertas em todas as frentes, renunciando ao conhecido pelo desconhecido, resistindo ao inevitável princípio da repetição, permanecendo imóveis no interior de nosso movimento.

Interrogar-se a respeito de tudo na vida é a chave do ser, mas quem quer que se arrisque despreparado nesta experiência encontrará um muro de resistência em si mesmo, ou simplesmente sentirá medo de ser imbecil, incapaz, etc. Só pesquisadores excepcionalmente motivados aceitarão o risco e abrirão espaço para a interrogação — ultrapassando os fantasmas da insegurança. A maioria dentre nós acha-se tão ocupada com a resposta de êxito e tão identificada com nossa própria imagem, que precisamos de choques severos como a morte, o sofrimento, a doença, a frustração profunda, ou a “supergratificação”, a fim de despertarmos para a indagação.

A interrogação está aqui, esperando por nós, acompanhando-nos a toda parte, uma vez que nós mesmos somos a interrogação. Parti dela ao perguntar “Que sou eu?” mas esta abordagem me deixa de fora, um estranho, um mero observador de mim mesmo. Ao surgir na mente, a questão exige uma resposta mental e me mantém cindido entre minha compulsão a obter explicação e minha compulsão a obter poder sobre meu mundo objetivo. A compreensão exige mais. Exige experimentar — ou seja, ser testada e ser aprovada. Tenho de me engajar, de responder totalmente no ato de conhecer-me. Surgindo do ser, a questão encontra resposta através do ser. Nossa questão desloca-se, assim, de um ponto de vista raciocêntrico para um ponto de vista ontocêntrico e transforma-se em “Quem sou eu?”

Por trás da enganosa tela de todas as outras perguntas, encontra-se essa pergunta de cada homem em sua humana existência. Trata-se de sua primeira e última interrogação. Hoje, como nos séculos pretéritos. No decurso da história do homem, luzes mortiças, claras ou resplandecentes reiteradamente reativaram esta questão. Constitui o eixo em torno do qual se move a espiral da eterna revolução da cultura humana.

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