Excerto de “A Busca”, Jean Sulzberger (org.), trad. Octavio Mendes Cajado. Pensamento, 1989.
O homem nasceu buscador.
Equipado como o foi pela natureza, para vibrar com uma vasta série de impressões, não está predestinado a um surpreender-se interminável? Obrigado por necessidade a escolher, dentre essas impressões, as que se ajustam a uma assimilação consciente — e, por esse modo, aproximar-se de uma genuína percepção da própria identidade — não é escolhido para uma contínua auto-interrogação?
Tal é a sua verdadeira vocação, o seu direito inato. Pode esquecê-lo, negá-lo, escondê-lo nas profundezas do seu ser inconsciente; pode desencaminhar-se, tratar mal esse dom oculto e aumentar seu próprio alheamento da realidade; pode até tentar convencer-se de que atingiu, de uma vez por todas, as plagas da Verdade eterna. Não importa; esse chamado secreto ainda está vivo, instigando-o desde o seu interior a tentar, e a tentar cada vez mais, compreender o sentido de sua presença aqui na terra. Pois ele aqui está para despertar, para lembrar-se e para buscar, muitas e muitas vezes.
Buscar o quê?, poder-se-ia perguntar. Há de haver, por certo, um alvo definido, um propósito, uma marca a ser atingida no devido tempo. Já não temos sido advertidos com demasiada frequência pelos cientistas de que “se não soubermos o que estamos procurando, nunca saberemos o que realmente encontramos”? De acordo com o ponto de vista deles, a predizibilidade matemática há de sempre prevalecer sobre o fértil desafio da incerteza. E nenhum deles nos dará atenção se nos aventurarmos a observar que “saber” de antemão significa, inevitavelmente, que nunca “encontraremos” coisa alguma. Com efeito, não há escapatória ao velho bicho-papão da “essência das coisas”, a não ser que nos lembremos da frase de Scotus Erigena: “Deus não sabe o que Ele é, porque Ele não é nenhum ‘quê’.”
Isso não pode deixar de lembrar-me um amigo que, sentindo-se velho, se preparava para empreender o que lhe parecia ser a derradeira jornada aos lugares sagrados e aos homens sábios do Oriente.
Ao despedir-me dele, eu disse:
— Espero que encontre o que está procurando. E ele replicou, com um sorriso pacífico:
— Como não estou realmente procurando nada, talvez o encontre. Livremo-nos de pronto de um possível mal-entendido e afirmemos com clareza que nenhum conhecimento verdadeiro poderá ser, algum dia, alcançado por mero acaso. Tamanho é o fascínio que exerce sobre nós o mutável chamariz da existência que afasta o nosso interesse da percepção imediata do essencial. Deixar-nos levar por “visões” e “descobertas” persuasivas, por sedutoras que sejam, ou ceder ao feitiço do que se poderia denominar a “busca pelo amor da busca” é tão-somente dar-nos o prazer do devaneio — uma forma de auto-tirania que discrepa muito das necessidades objetivas do homem.
Nessas condições, como haveremos de iniciar uma busca autêntica? Em lugar de cedermos de pronto ao apelo de qualquer “caminho” particular, devemos primeiro tentar, com humildade, discernir ~ alguns dos requisitos imprescindíveis para um começo com o pé direito.
Não será essencial, em primeiro lugar, um ato de reconhecimento — reconhecimento da total necessidade da própria busca, sua prioridade, sua urgência para quem aspira a despertar e a assumir, tão plenamente quanto possível, sua existência interior e exterior?
Toda a vez que um homem acorda, acorda com a falsa presunção de que sempre esteve acordado, e é, portanto, o senhor dos seus pensamentos, sentimentos e atos. Nesse momento compreende — e esse é o lado umbroso do reconhecimento — quão profundamente se ignora a si mesmo, quão estreitamente depende da teia de relações mercê das quais existe, quão desajudado flutua ao bel-prazer de qualquer sugestão que bem entender de agir sobre ele em um momento qualquer.
Ele também pode acordar — nem que seja pela fração de um momento — para a luz de uma consciência mais elevada, que lhe propiciará um vislumbre do mundo de potencialidades ocultas a que pertence essencialmente, e o ajudará a transcender suas mesmas limitações e abrir caminho para a transformação interior.
Nesse momento, a chamada para a busca ressoa dentro dele e a esperança lhe nasce no coração. Mas o sofrimento o golpeará se se julgar doravante a salvo. A visão não dura — talvez não se destine a durar — e, mais uma vez, ele se vê presa da estonteante impressão de haver recaído em suas próprias e insolúveis contradições.
Sentindo-se perdido, pode perder-se ainda mais na busca da recuperação de si mesmo; experimentando a própria cegueira, pode aumentá-la tentando enxergar; tomando consciência da própria escravidão, pode fazer com que a busca mesma da liberdade o escravize mais e mais.
Até que, de repente, torna a acordar, e todo o processo recomeça. Com o passar do tempo, experimentando e falhando, repetidamente, chega, afinal, a harmonizar-se com a parte específica que lhe cabe representar nesta peça enigmática.
Toda a vez que o homem desperta e se lembra do seu propósito, desperta para um milagre fugaz e, ao mesmo tempo, para um enigma irrespondível. Compreende, não raro, que, para poder despertar, estava predestinado a dormir; para poder recordar, estava predestinado a esquecer. Tal é a lei desta situação equívoca: sem dormir, não há despertar; sem esquecer, não há recordar. Daí que, se continuar procurando o que está além da ambivalência, ver-se-á tão-somente diante de outro fantasma. Existe, com efeito, e sempre existiu, uma continuidade secreta em seu ser, que se lhe reflete em parte na estrutura permanente do corpo e nas atividades regularmente recorrentes das funções orgânicas. Mas num mundo de energias que se movimenta perpetuamente, uma continuidade relativa como essa nunca se poderá equiparar à imutabilidade. A lei da existência do homem é vir-a-ser — ou morrer. Se o homem devesse permanecer imóvel para sempre e fundir-se na eternidade, pouco sentido haveria em sua permanência na terra.
Tal é a condição humana: faz-se imperativa uma lúcida e total aceitação dela. Somente isso ajudará o verdadeiro buscador a reafirmar sua determinação interior. Precisará estar pronto para agir de acordo com uma realidade sempre em movimento, pronto para reconciliar-se com a lei da alternância, a lei dos giros sucessivos do destino, pronto para conformar-se com o que se lhe possa oferecer, favorável ou hostil, pronto para rejeitar todo faz-de-conta e nada esperar a título de resultado ou recompensa.
Mais cedo ou mais tarde tentará não só aceitar riscos, mas também aceitar conscientemente o desafio e colocar-se em perigo. Só então responderá verdadeiramente ao apelo. Longe de abjurar das revelações que lhe foram concedidas por meio de ensinamentos com os quais esteve anteriormente em contato, anseia por “verificá-los” — isto é, provar que são verdadeiros para si mesmo aqui e agora. A participação consciente no que é evidente por si mesmo constitui a meta do buscador autêntico: uma meta tão próxima e, a um tempo, tão remota, uma meta tão constantemente oferecida e tão constantemente retirada — a fim de que ele continue buscando.
Para o homem, muito além das suas esperanças e predileções pessoais, buscar é uma tarefa sagrada e, se ele a aceitar e tentar persistentemente cumpri-la, verificará que ela corresponde, com efeito, não só às suas necessidades essenciais, senão também às suas capacidades específicas.
Paciência — muita paciência, resistência e determinação, vigilância e prontidão, disponibilidade e flexibilidade consciente — todas essas qualidades são indispensáveis ao buscador.
Pode ser que chegue o momento êm que compreenderá que, para desenvolver tais potencialidades latentes, precisará de orientação e apoio. Libertado de qualquer pretensão de ser um “conhecedor”, colocar-se-á deliberadamente sob a autoridade de um mestre. Para absorver-lhe os ensinamentos e seguir-lhe as diretivas? Sim, e o que é até mais importante, para perceber e estudar o modo como lida com a vida e com as pessoas, para observar a maneira pela qual transmite o seu entendimento através do comportamento e do tom de voz, e, finalmente, para ser capaz de com ele comungar, mudo, num instantâneo volver de olhos.
Fazendo um aprendizado dessa natureza o buscador, aos poucos, liberta-se do preconceito e torna-se sensível à ampla série de manifestações ou testemunhos da busca, onde quer que suceda encontrá-los — independentemente de quaisquer incoerências aparentes que se lhe deparem em suas respectivas características. Compreenderá que todos se referem ao mesmo Desconhecido que ele próprio confronta.
Tendo isso em mente, podemos perguntar-nos por que se escolheu o eloquente desenho de Sengai como motivo deste livro. Esta ilustração Zen não parece, porventura, um gesto conclusivo diante do que deve ter sido, para o artista, uma busca de toda a vida? Não podemos deixar de visualizar Sengai preparando-se — horas de meditação em perfeita imobilidade —, depois o suave e cuidadoso remexer da tinta, e o pincel que se ergue, permanece por instantes suspenso no ar como a águia que vigia a presa, até que, repentinamente — pronto! — está feito!
Círculo, triângulo, quadrado.
Mas que espécie de geómetra é este homem? Observem-lhe o “quadrado”! A inexatidão das linhas, a tenuidade da tinta! É evidente, todavia, que Sengai não liga para isso: a exatidão ordinária não faz parte da sua província. É explícito que o interessam muito mais a relação interior existente entre os três símbolos e o modo com que se engendram uns aos outros.
Por si mesma, a sequência deles é um enigma. Se refletirmos nela, compreenderemos que flui naturalmente da direita para a esquerda. Seguindo o movimento do pincel, completamos o círculo, deixamo-lo para pegar o triângulo, e finalmente, desaparecemos na derradeira pincelada do quadrado.
Para nós, talvez seja difícil aceitar essa interpretação da sequência, visto que, de acordo com o nosso sistema ocidental de associações, automaticamente a vemos mover-se da esquerda para a direita. Essa é a maneira com que fomos treinados para “ler” coisas, seguindo sempre na direção do ponto final e do fechamento do círculo.
Existem, com efeito, sugestões dignas de confiança quanto à provável intenção de Sengai. O Professor D. T. Suzuki, reconhecida autoridade em Zen Budismo, sugeriu que o círculo representa a ausência de formas, a vacuidade ou o vazio, onde ainda não há separação entre a luz e a treva; o triângulo evoca o nascimento da forma, que surge da ausência de formas; e o quadrado, como combinação entre dois triângulos opostos, representa a multiplicidade das coisas.
Entre a unicidade infinita e a inexaurível variedade de formas em que se divide, entre a solidão da Essência e a Manifestação, que está sempre brotando, repousa o mistério da Criação não-evolutiva.
Mas devemos descansar satisfeitos com a visão maravilhosamente condensada de Suzuki como a única digna de confiança? Ou um consentimento tão fácil não trairia, em certo sentido, tanto a pintura quanto o comentário? Ou deveríamos antes manter a mente aberta ao fluxo de sugestões provenientes de outras fontes como, por exemplo, a “quadratura do círculo” dos alquimistas — e até às que podem nascer dos nossos recessos mais íntimos — enquanto nos certificamos de que não vamos cair sob o feitiço de nenhuma delas.
Estamos prontos agora para transcender a perigosa fascinação das contradições aparentes?
Ponderemos a ordem dada às três seções de A Busca e o modo como elas foram designadas para combinar com o padrão da esquerda para a direita. Aqui, mais uma vez, nos vemos diante da lei da alternância, pois este é o momento de realizar a escalada de volta à origem. Exilados para este pequeno e remoto planeta, onde a nossa única oportunidade possível de sobrevivência inclui os baluartes protetores da estabilidade material (quadrado), temos de encontrar laboriosamente o caminho para o descobrimento da direção, da orientação e da coerência (triângulo) até estarmos prontos para a última busca — o retorno à origem, ao começo (círculo), de onde. . . mas isso é outra história, ou melhor, talvez a mesma história, a única e eterna história.
Para o que nasceu buscador não há como escapar ao labirinto. Talvez chegue mesmo a compreender que ele próprio é o labirinto, e que nenhum malogro, nenhuma “resposta” oferecida ao longo do caminho, o impedirá de mover-se mais para o centro do próprio mistério. E, longe de tentar furtar-se ao desafio, esperará tornar-se cada vez mais capaz de enfrentá-lo sozinho; somente isso conferirá significado à sua busca.